terça-feira, 23 de outubro de 2012

Green-haired, pale skin, eyes of the empty night sky.

            Eu estava sonolentamente recostado à janela, esperando a brisa matinal atender a minha preferência por cafés frios. Quando ela apareceu na minha frente, saída de algum guarda-roupa mágico, talvez. Parecia assustadoramente familiar. Pálida, a cor das bochechas esticando ao máximo os braços para alcançar as argolas negras em torno de seus olhos - a própria visão de uma noite vazia. Ela me encarou por um vago e desconcertante instante, e talvez eu estivesse aparentando a minha surpresa, porque ela curvou os lábios num desdenhoso e quase imperceptível arco. Não lembro se ela se apresentou antes de despejar, como numa avalanche nos Andes, em mim essas palavras:
            "Você escreve, não é? Eu sei que sim. Escritores precisam de coisas sobre o que se escrever. Então lhe darei uma história. Escreva-a para mim. Conte sobre uma jovem solitária que, apesar de ser uma entre muitas, essa jovem carregava uma grande culpa, pesada como o mundo. Ela uniu duas pessoas completamente incompatíveis, por tanto tempo que elas acostumarem-se juntas, como um prisioneiro gradativamente acostuma-se com seu sequestrador. Conte sobre essa jovem que cresceu estranha e deslocada - de cabelos verdes em meio a um mundo castanho. Todos riam dela, pois era, afinal, patética. Então ela começou a pegar as coisas. Isso, as coisas alheias. No começo, pequenas propriedades materiais. Todas, depois de seu sumiço, ficavam muito bem guardadas, escondidas, ocultadas para o seu exclusivo deleite. Não tinham valor nenhum, mas valiam mais do que qualquer cosia. Eram pedaços dos outros que a pertenciam. Depois, a jovem começou a roubar pensamentos. Aqueles nunca verbalizados. E todos e todas a admiravam porque conseguia pensar o que os outros pensariam.
            "Mas então chegou esse jovem - olho escurecido, seriedade crônica em todas as palavras. Mãos frias. Ele a tocou com essas mãos e então soube - soube de tudo: sua vida em desgraça, sua cleptomania e sua telepatia. E roubou-os todos, todos os dons. E seu brilho, também. Ele foi embora há gerações, antes de todos os outros. Conte a todos que agora ela vaga na incerteza das ruas, não sabe onde está. Ela quer ir pra casa - alguém está em casa? Há casa? Ele é sua casa e ele se foi. Agora ela é como uma árvore derrubada pelo vento, agonizando sozinha enquanto seca de dentro para fora. Mas o topo verde, esse ainda vive."
            Ela contou isso tudo sem nenhuma expressão no rosto, olhos parados como se já não vissem. Mas algo em mim dizia que ela via, sim - ela o via.
            Foi embora tão magicamente como chegou, tanto que até agora me pergunto se não a imaginei o tempo todo. Deixou-me ali parado, perplexo, com uma cobertura congelada por cima do meu café, mirando o branco-acinzentado da neve.
            Não me lembro seu nome e, aos poucos, sua face vai se esvaindo de minha mente. Entretanto, jamais esquecerei o brilho de seus longos cabelos verdes.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Prelúdio

            Quem sabe eu seja, sim, meio grossa. Nunca fui um exemplo de solicitude e carinho, a não ser comigo mesma. Não tenho vergonha de admitir que sou um tanto (um tanto relativamente expressivo) egoísta. Acho que o egoísmo é intrínseco à felicidade – e todo mundo diz que devemos nos amar acima de tudo, não? Mas a questão é que agora me encontro fria. Fria, inclusive, de várias formas: fisicamente fria, incapaz de aquecer-me com essa indecisão sazonal; mentalmente fria, incapaz de refletir e tomar decisões dignas de uma humana; e emocionalmente fria, incapaz de diversos sentimentos considerados bons. Estou rodeada de um abismo de incapacidade em que eu caí e nunca encostei no rochoso chão.
            A minha falta de idade me condena, é claro, muitos me chamariam de “rainha do drama”. Não, não sou. Se fosse, jamais poderia ser chamada de fria. Drama queens verbalizam todos os seus pensamentos, sentimentos, sensações, afinal, tudo o que passa por seus corpos e mentes. Já em mim tudo tem um cadeado.
            Como havia dito, a minha falta de anos na carteira de identidade entregam uma falsa concepção do que eu sou. Acho engraçado. Nos anos iniciais da minha trajetória educacional, não gostava de contar piadas às minhas colegas porque nunca ninguém entendia. Conseguia ver que os risos eram falsos, e, por favor, explicar piada é a coisa mais patética que existe. Você não consegue torna-la engraçada, só consegue uns olhares estranhos, um “ah, entendi” consensual, só para não te deixar desapontada. O fato é que (por favor, não confunda com autoafirmação) desde sempre me encontro em estágio avançado. Como um embrião que ficou pronto aos oito meses. Vivi muita coisa, com muita intensidade, em silêncio. Acredito que, quando são guardados para si os acontecimentos, eles tomam uma proporção ainda maior e mais nítida; são propriedades suas, súditos das suas conclusões. Uma informação compartilhada perde um pouco da sua “graça”, da sua validade. Segredos são muito melhores que verdades factuais.
            O que mais me incomoda, no entanto, são essas pessoas que passam e olham, mas nunca me decifram. Sinto-me um jogo de palavras cruzadas que nunca se encaixa. Sinto, também, pena de quem um dia tentou jogar-me. Só os decepcionei com meu conjunto de palavras não harmoniosas. Mas me decepcionaram também, no momento em que falharam. Mesmo o mais transparente fio de esperança gera um feedback de dor bem expressivo.
            Penso que, então, todo esse curto tempo vivido me deixou com sequelas possivelmente irreparáveis e que eu, na minha teimosia típica, cultivo com o cuidado que dedico somente a mim. Não faço por mal – a frieza que me é característica é o meu escudo contra o seu calor, que tenta me iludir com a inverdade de um abraço na noite tempestuosa. Não é que não o queira, é que não me permito. Não por enquanto. Quando a verdade brotar e alguém vir com seu Superbonder tentando colar meus pedaços, eu aceitarei de bom grado o reparo nesse coração errante.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Catarse.


            Creio que deveria estar triste neste momento. Sinto um aperto em algum lugar de minhas entranhas, mas a dor é quente e aconchegante, confortável até. Uma dor que faz crescer, amadurecer, expandir-me. Por isso, e por alguma razão que está além do meu alcance, sinto-me incapaz de derramar uma lágrima sequer de sofrimento. Não foi por falta de tentativas. Espero já faz uma metade de ano por essa explosão de pranto incontrolável, inconsolável e incansável. Mas ele não vem.
            Atribuí minha indiferença aos bons momentos que vivi. Quem sabe seriam eles tão importantes e marcantes que já me consolam antes mesmo que a decepção me receba em sua casa de gelo. Agarro-me a eles com toda a força física e metal que ainda me resta. Sem eles, apenas um abismo obscuro e frio me espreita, com olhos de gato me convidando a um salto. Não hei de ceder aos seus apelos.
            Estou contemplando o fim. Eu sei, é uma forma de nega-lo, uma última e sôfrega esperança, toda em fiapos, toda ensanguentada. Sou uma expectadora da minha própria tragédia, examinando da plateia enquanto esvaziam a aljava em meu peito. Padeço suspirando: “Exijo uma catarse desse amor.”

terça-feira, 11 de setembro de 2012

"You're gonna make me lonesome when you go", Bob Dylan.


            Sofro de dor compartilhada. Você chora e meu primeiro reflexo é estender-lhe os braços e oferecer-lhe meu calor. Mesmo com todos esses quilômetros que nos distanciam. Parece tão óbvio, mas não é assim que sinto. A sua dor é a minha dor, mesmo que a causa do seu choro para mim seja desconhecida. Eu não sabia do ocorrido até hoje, mas isso explica os maus pressentimentos do meu tempestuoso domingo. O aperto insanamente familiar no coração. As vertigens que me deixaram desnorteada por longos minutos, várias vezes. Você sofria e meu corpo, de alguma forma, captava seus sinais.
            Não é a primeira vez que te sinto aqui de longe. Já é usual imaginar a sua mão tocando a minha, quando me deito sozinha em uma noite qualquer. Olhar para o céu e, ao perceber qualquer brilho esverdeado, lembrar seus olhos. Porém, imaginar a cena de seus olhos lacrimejando de dor é a pior das angústias. Infelizmente, eu tão longe não posso acolher suas lágrimas em meus dedos para nunca deixa-las molhar seu rosto. O único merecedor de ser acolhido por sua face é o seu sorriso.
            Agora eu sei que quando você foi embora a minha trilha inconsciente era puramente dylanesca. Mas te verei no céu acima, na grama alta, naqueles que eu amo. Eu ainda te vejo por aí, mesmo às vezes estando muito distraída para, quem sabe, te ver passar. E em algum canto do meu ser eu reconheço: você ainda domina uma parte muito grande de mim.
            Você me fez muito solitária quando partiu.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Você.


            O seu jeito é o meu maior vício. Sabe, esse jeito manhoso de se aproximar, de falar ao ouvido. O jeito como você me leva para debaixo das estrelas, para me distrair e poder tocar em mim enquanto me orienta pelos pontos cardeais – eu sempre fui péssima em Geografia! O seu jeito de chegar repentinamente e beijar meu pescoço que, como eu mesma já declarei, sempre me pega desprevenida e me arrepia dos pés à cabeça. Esse jeito de fazer tudo errado e dar tudo certo, sem ter razão nenhuma, apenas me conquistando pelos argumentos. Esse seu jeito de me desencontrar, me encontrar por acaso, me perder e me deixar, para depois voltar, com seus olhinhos de cachorro sem dono, e derreter meu coração por completo. E, apesar de me destruir aos poucos, remoer minhas entranhas, tirar meu sono e revirar meus sentimentos, eu quero esse teu jeito para sempre, só para mim.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Martha Medeiros, "Strip-Tease".

            Chegou no apartamento dele por volta das seis da tarde e sentia um nervosismo fora do comum. Antes de entrar, pensou mais uma vez no que estava por fazer. Seria sua primeira vez. Já havia roído as unhas de ambas as mãos. Não podia mais voltar atrás. Tocou a campainha e ele, ansioso do outro lado da porta, não levou mais do que dois segundos para atender. Ele perguntou se ela queria beber alguma coisa, ela não quis.
            Ele perguntou se ela queria sentar, ela recusou.
            Ele perguntou o que poderia fazer por ela. A resposta: sem preliminares. Quero que você me escute, simplesmente.
            Então ela começou a se despir como nunca havia feito antes.
            Primeiro tirou a máscara: "Eu tenho feito de conta que você não me interessa muito, mas não é verdade. Você é a pessoa mais especial que já conheci. Não por ser bonito ou por pensar como eu sobre tantas coisas, mas por algo maior e mais profundo do que aparência e afinidade. Ser correspondida é o que menos me importa no momento: preciso dizer o que sinto".
            Então ela desfez-se da arrogância: "Nem sei com que pernas cheguei até sua casa, achei que não teria coragem. Mas agora que estou aqui, preciso que você saiba que cada música que toca é com você que ouço, cada palavra que leio é com você que reparto, cada deslumbramento que tenho é com você que sinto. Você está entranhado no que sou, virou parte da minha história."
            Era o pudor sendo desabotoado: "Eu beijo espelhos, abraço almofadas, faço carinho em mim mesma tendo você no pensamento, e mesmo quando as coisas que faço são menos importantes, como ler uma revista ou lavar uma meia, é em sua companhia que estou".
            Retirava o medo: "Eu não sou melhor ou pior do que ninguém, sou apenas alguém que está aprendendo a lidar com o amor, sinto que ele existe, sinto que é forte e sinto que é aquilo que todos procuram. Encontrei".
            Por fim, a última peça caía, deixando-a nua "Eu gostaria de viver com você, mas não foi por isso que vim. A intenção é unicamente deixá-lo saber que é amado e deixá-lo pensar a respeito, que amor não é coisa que se retribua de imediato, apenas para ser gentil. Se um dia eu for amada do mesmo modo por você, me avise que eu volto, e a gente recomeça de onde parou, paramos aqui".
            E saiu do apartamento sentindo-se mais mulher do que nunca.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade, "Carta".


            Há muito tempo, sim, que não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias. Quem sabe até a máquina já enferrujou, ou meus dedos não tenham o mesmo ritmo. E o meu café, certamente, há muito esfriou.
            Tenho perambulado por estas ruas, na penumbra azulada do crepúsculo, de mãos nos bolsos e testa franzida. A brisa que me abraça nessas idas e vindas noturnas é gélida e pesada, e faz-me sentir com ombros úmidos e sobrecarregados.
            Tenho visto pouca gente. A não ser por meus passeios de coruja, quando os faróis dos carros que infestam essa cidade não cegam meu campo de visão, ainda conservo meus hábitos de eremita urbano, conservando meu ostracismo social que sempre me foi tão característico. A memória já é uma companhia demasiado sórdida para precisar de outro alguém.
            Sim, ainda tenho noites insones, pelas quais adquiri essas auréolas arroxeadas em torno dos meus já meio exânimes olhos.
            Ainda gosto de mocca. Tenho as xícaras de metal. O cobertor marrom. A vista para a avenida. Os volumes empoeirados de Bee Gees. E, agora, mais saudades de ti.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Sobre esperar.


            Acho bacana o senso de compreensão que certas pessoas têm ao dizer "passo depois!" quando perguntam por uma pessoa que está ocupada. Quando elas dizem "então eu espero", eu as detesto imediatamente.
            É desconfortável ficar do lado de alguém que está esperando. É desconfortável olhar para a pessoa e ter a sensação que ela espera alguma coisa, ou reação, de você também, mesmo que você não tenha sido a pessoa por quem ela originalmente perguntou. E nunca temos assunto ao esperar. Não sei se é por causa do completo desconhecimento entre as duas pessoas - a que espera e a coitada expectadora - ou pela estranheza da situação. O fato é que não se consegue estabelecer um fluxo contínuo de inter-relação decente. Eu estaria afim até mesmo de banalizar uma filosofia sobre a impossibilidade de se prever o futuro - quando prédios irão desabar, por exemplo. Mas tudo o que se tem é um silêncio aterrador e angustiante.
            Não esperem, por favor. Procurem outra coisa pra fazer, estou certa que suas vidas são bem ocupadas. Meu pai já sai do banho.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

(16 de outubro de 2011, 23h28min)

            
            Quando tudo o que você quer é sufocar os seus problemas e ouvir todos os dela, ajudando-a, apoiando-a, sendo seu pinico e seu lenço Dory's.
            Quando a única coisa que você mais deseja nesse mundo é protegê-la de tudo, para que ela não se machuque. Ela nem sequer precisa te amar -- seu amor é grande o suficiente pros dois e para quem mais chegar no caminho.
            Quando você quer mordê-la nas bochechas, por ser tão linda e por você não acreditar nenhum segundo que ela está ali, tão próxima.
            Quando você a ama inteira, inegável e inevitavelmente.
            Daí, o melhor que você pode fazer (no seu conceito idiota de proteger) é mudar-se, esquecendo que ela se apaixonou (o que você não acredita) por quem você é, COM as manias, as implicâncias, as crises, as preguiças, as piadas sem graça, os problemas, os vícios e os maus gostos.
            E no instante em que você, relapso, pisca os olhos, você a perde.
            Maldita amada pessoa.