sexta-feira, 2 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade, "Carta".


            Há muito tempo, sim, que não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias. Quem sabe até a máquina já enferrujou, ou meus dedos não tenham o mesmo ritmo. E o meu café, certamente, há muito esfriou.
            Tenho perambulado por estas ruas, na penumbra azulada do crepúsculo, de mãos nos bolsos e testa franzida. A brisa que me abraça nessas idas e vindas noturnas é gélida e pesada, e faz-me sentir com ombros úmidos e sobrecarregados.
            Tenho visto pouca gente. A não ser por meus passeios de coruja, quando os faróis dos carros que infestam essa cidade não cegam meu campo de visão, ainda conservo meus hábitos de eremita urbano, conservando meu ostracismo social que sempre me foi tão característico. A memória já é uma companhia demasiado sórdida para precisar de outro alguém.
            Sim, ainda tenho noites insones, pelas quais adquiri essas auréolas arroxeadas em torno dos meus já meio exânimes olhos.
            Ainda gosto de mocca. Tenho as xícaras de metal. O cobertor marrom. A vista para a avenida. Os volumes empoeirados de Bee Gees. E, agora, mais saudades de ti.